Post do arquivo do Café com Blá Blá Blá*
Este post faz parte do arquivo do blog.
Em 2018 nós perdemos todos os posts antigos e, aos poucos, estamos subindo o conteúdo antigo para que todos tenham acesso.
Assim que saiu a lista com os autores confirmados para a FLIP (Festa Literária de Paraty), uma das presenças que gerou a maior quantidade de comentários foi a da autora ucraniana Svetlana Aleksiévitch. Seu livro As Vozes de Tchernóbil havia acabado de ser publicado e todos os jornalistas e blogueiros que acompanho estavam comentando bastante sobre ele.
Apesar de não exercer realmente minha profissão de jornalista, confesso que tenho um fraco por documentários e livros-reportagem sobre temas delicados e interessantes. Portanto, os comentários que citei acima foram apenas um estímulo maior para que eu furasse a fila de leituras e mergulhasse nessa historia oral do maior acidente nuclear da História.
“Na noite de 26 de abril de 1986… Em apenas uma noite nos deslocamos para outro lugar da história”.
Em algum momento da vida, muitos de nós já “ouvimos falar” do acidente nuclear de Tchernóbil. Seja na aula de química ou através de algum comentário na televisão, o nome da cidade sempre esteve atrelado no nosso imaginário com as palavras tragédia, radiação e morte. Porém, nunca havia tido uma noção real do que isso significava até ler a obra da Svetlana.
Jornalista nascida na Ucrânia, a autora reconta a história do acidente através de relatos orais de dezenas de testemunhas que presenciaram o acontecimento de alguma forma. São mulheres de bombeiros que estiveram na contenção do incêndio do reator, homens que trabalharam na limpeza da área afetada, camponeses que tiveram que deixar suas casas nas regiões contaminadas, mães que presenciam em seus filhos as consequências do acidente, crianças que convivem com o resultado da radiação, entre muitos outros personagens reais que tiveram suas vidas afetadas diretamente pelo ocorrido.
O livro não é um documentário sobre o acidente nuclear. Ele não avalia a repercussão mundial, a procura pelos acusados e nem o impacto financeiro que isso teve na região. Ele mostra como a vida de milhares de pessoas mudou repentinamente de um dia para o outro por causa de um inimigo invisível e inexplicável, contra o qual era praticamente impossível combater.
“Os sentidos já não serviam para nada; os olhos, os ouvidos e os dedos já não serviam, não podiam servir, porque a radiação não se vê, não tem odor nem som. É incorpórea”.
Um dos aspectos mais tristes, na minha opinião, era a falta de informações que as pessoas tinham. Em uma tentativa de “evitar o pânico”, ou melhor, mascarar uma consequência grave da falta de preparo dos profissionais técnicos, o governo escondeu da população a gravidade do ocorrido e não tomou as medidas necessárias para proteger as pessoas. O máximo que foi feito foram algumas evacuações que, sem maiores informações, pareciam arbitrárias e cruéis.
Outro ponto que me impressionou muito foi justamente conferir as consequências da radiação e ler sobre como era necessário até mesmo “enterrar a terra” para evitar mais contaminações. É horrível ler sobre como casas inteiras eram enterradas, animais assassinados e alimentos desperdiçados, pois eram fontes de muitos roetgen de radiação – e como as pessoas tinham que assistir todas as suas coisas desaparecendo ser poder fazer nada.
Acredito que a forma de narrativa pela qual a autora optou (relatos orais das mais diferentes idades e escolaridades) nos insere ainda mais na vida dessas pessoas. É como se estivéssemos vivenciando mesmo suas histórias e sofremos e nos abalamos com elas. É uma infinidade de relatos – alguns com “finais felizes” e outros com “finais tristes”. Coloco “finais” entre aspas porque para todos eles, essa história ainda não acabou. É a sua realidade, a sua vida.
Confesso que passei a leitura inteira angustiada – angustiada por seus personagens, angustiada pela sua ignorância, angustiada pela nossa ignorância. Agora percebo que muito foi oculto não só da população local, mas de todo o mundo. Fomos criados com um ideário de que Tchernóbil é sinônimo de morte e aberrações, como um “freak show”, mas não sabemos o que de fato aconteceu ali.
Saio desta leitura com uma visão diferente do acidente nuclear… e do mundo.
“É tão fácil deslizar para a banalidade. A banalidade do horror”.
Ficha Técnica:
Título: Vozes de Tchernóbil
Autor: Svetlana Aleksiévitch
Editora:Companhia das Letras
Páginas: 383
País: Bielorrússia
Avaliação: 5/5 estrelas